quinta-feira, 1 de abril de 2010

SÓ TERMINA QUANDO ACABA

Masanori Ohashy - Texto: José Rezende Jr.

Só termina quando acaba

Esta não é uma história triste, avisa o personagem principal. É uma história recheada de episódios tristes, mas com final feliz. Não, corrige o personagem principal: é uma história feliz, mas sem final, porque ainda não acabou. Esta é uma história TÃO cheia de episódios tristes que poderia até entrar na novela. E não é que entrou? Quer dizer, entrou DEPOIS da novela (Viver a Vida), no final do capítulo, em forma de depoimento do personagem principal desta história. E ajudou a levantar o astral de muito telespectador. Sim, porque esta é uma história de superação. E também porque o nosso personagem não abre mão do bom humor. Conta piada de câncer até na sala de espera da quimioterapia! E a plateia – toda ela com câncer – morre de rir! Quer dizer, todo mundo ri, mas ninguém morre, até porque rir é o melhor remédio.

Mas vamos à história: Estamos em 1985 e Beto Volpe – o nosso personagem – acaba de saber que um colega de banco está com aids. A notícia assusta, mas Beto continua curtindo a vida adoidado: noitadas e mais noitadas em parque público, drogas e mais drogas, parceiros e mais parceiros, e nada de camisinha. Até que quatro anos depois resolve fazer o teste de HIV. Surpresa: não reagente! O cara que transava com um monte de parceiros não tinha aids! Em agradecimento à Divina Providência decidiu que, a partir dali, camisinha sempre! Até que apareceu o grande amor. E como prova de amor do grande amor, os apaixonados largaram a camisinha de lado. A parte triste da história começa quando o amor acaba. Ou, mais exatamente, quando nosso herói passa a ter o mesmo sonho todas as noites: ele numa assembleia de bancários, o corpo só pele e ossos, as faces encovadas... Beto faz novo exame. Surpresa: reagente! O cara que praticava sexo com amor e um único parceiro – mas sem camisinha – tinha aids. E em 1989 a aids não queria dizer “você vai morrer”; o que a aids dizia, em alto e bom som, era: “você está morto”.

A morte não compareceu pessoalmente, mas mandou representantes de peso. Em 1996, um CD4 marcando 6, consequência do mergulho nas drogas para suportar as mortes dos amigos. “Senhorita, não está faltando um zero ou dois aqui”? Não estava. E vieram: pneumonia, três episódios de neurotoxo, infecção generalizada por cândida, queda de peso de 68 para 34 kg e o rótulo de “paciente terminal”. Beto odeia tanto este rótulo que seu livro de memórias vai se chamar – com o perdão da má palavra – Terminal é o caralho!

Para Beto Volpe, o jogo só termina quando acaba. E ele sobreviveu, com a ajuda do coquetel. Mas aí as pernas e os braços foram afinando e o rosto ficando encovado. E veio a depressão, a vontade de não mais sair de casa, e os mergulhos numa droga do bem chamada internet, que dava então os primeiros passos. E vieram os bate-papos virtuais com ou¬tros soropositivos, e a vontade de com eles criar uma ONG. E hoje já lá se vão dez anos de militância, que lhe renovou a vontade de viver.

Beto descobriu que sofria de lipodistrofia, efeito colateral dos medicamentos. Por isso o rosto encovado e a aparência de velho. Decidiu ser cobaia de um implante facial e ficou jovem e bonito de novo. Feliz. Mas eis que as pernas começam a doer: cabeças de fêmur necrosadas pelo tanto de gordura no sangue. E vem a fase mais dolorosa: duas cirurgias nos quadris, fratura por osteoporose, instalação de placa, retirada de placa e instalação da prótese de cabeça de fêmur, com breve alívio na rotina de dor, leito, cadeira de rodas, andador, bengala.

Início de 2003: linfoma na medula, pescoço, pulmão, fígado, baço, retroperitônio e virilha. E quimioterapia, e piadas sobre câncer, e 27 kg a menos, e a cura do câncer. Mas os infortúnios em série não haviam terminado: atropelamento por moto que subiu na calçada e fratura de quadril, instalação da segunda prótese, depois um carcinoma maligno no reto, e em seguida outro, e uma cirurgia e depois outra, e sessões diárias de radioterapia, da qual até hoje carrega efeitos colaterais.

Neste meio tempo, o pior de tudo: o suicídio do irmão caçula. As pessoas chegando para o velório do “filho do seu Geraldo” e tomando susto, como se vissem um fantasma, porque o que havia sido dado como morto estava vivo, e o morto era o outro filho do seu Geraldo, aquele que pelas leis da natureza teria ainda muitos e muitos anos de vida, e a mãe segurando as mãos do filho sobrevivente e murmurando “que ironia, que ironia”...

Beto dá valor a cada uma de suas feridas. O bicho que veio para matá-lo virou sua fonte de energia. Aprendeu que o sentido da vida é enfrentar as dificuldades. E que a vida é maior que a aids. Pensa que se morresse há 20 anos ninguém sentiria sua falta, mas que hoje cravou seus passos no planeta, ajudando outros soropositivos, semeando o bem. Tem a saúde frágil, mas é mais forte do que antes. Beto Volpe ama Beto Volpe, e procura expandir esse amor para o próximo. Porque, ensina ele, “amor represado vira câncer”.

E aqui termina a nossa história, e este é um final feliz, ainda que provisório, já que a história não tem fim. Ainda não terminou, porque, como diria Beto Volpe, terminal é o caralho!

FIM (provisório)