segunda-feira, 21 de junho de 2010

COQUETEL DE INCÔMODOS



Mulheres e homens soropositivos sofrem com a lipodistrofia, doença que distribui a gordura corporal de forma desordenada. Estudos mostram que 40% a 50% dos pacientes que tomam antirretrovirais convivem com o mal
Carolina Vicentin


Gisele, Lívia, Kátia e Simoni reclamam da falta de atenção do sistema público de saúde a portadores do HIV que desenvolveram a lipodistrofia

"De repente, eu fiquei gorda em cima e fina do quadril para baixo. Às vezes, ficava sem almoçar ou jantar para ver se perdia peso, mas nada disso resolve”, desabafa a balconista Disney Diniz, 36 anos. A queixa de Disney é comum em boa parte das mulheres portadoras do vírus da Aids. Soropositivos desenvolvem uma doença chamada lipodistrofia, que é a redistribuição da gordura corporal.
Isso significa que o tecido adiposo passa a se concentrar em alguns pontos — nas costas, nos braços, na nuca, nas mamas e no abdômen — e simplesmente desaparece em outros, como no rosto e no bumbum. “É uma coisa que acaba denunciando, na sua cara, que você tem o HIV”, diz a comerciante Lívia Lacerda, 50 anos, portadora do vírus há 12.
Estudos mostram que a lipodistrofia atinge de 40% a 50% dos soropositivos, homens e mulheres. Elas, no entanto, são as que mais sofrem com os efeitos da doença. “Meu bumbum ficou parecendo maracujá e minhas pernas estavam mais finas do que meus braços”, conta a vendedora Gisele Dantas, 40 anos, que convive com o HIV desde 1998.
A lipodistrofia é um efeito colateral dos medicamentos antirretrovirais, que inibem a ação do vírus no organismo. “A longo prazo, os remédios interferem no metabolismo da gordura. É como se fosse uma toxicidade do medicamento”, explica o infectologista Heverton Zambrini, do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo.
Estética e saúde:
Embora a lipodistrofia também seja uma característica do próprio HIV, ela fica muito mais acentuada nos pacientes que utilizam antirretrovirais há muito tempo. Não há um prazo para que ela apareça, mas, geralmente, isso ocorre depois de 10 anos de administração dos remédios. “Antigamente, a pessoa recebia o diagnóstico do HIV e logo começava a tomar a medicação mais forte. Hoje, isso não funciona assim. O portador faz uma série de testes para verificar qual a sua carga viral e qual a quantidade de leucócitos para definir o melhor tratamento”, esclarece a ativista Simoni Bitencourt, 34 anos, portadora do vírus há 19.
Simoni sente na pele o tamanho do problema: ela começou a desenvolver a giba (gordura acumulada na base do pescoço) e ainda não sabe se pode ou quando vai resolver a situação. “Eu já tenho problemas de coluna. Se não fizer uma cirurgia para retirar a giba, ela vai pesar nas minhas costas e posso ter ainda mais dores”, diz ela. “Não é pela estética, é uma questão de saúde”, reforça.
A jornalista Kátia Damascena, 41 anos, soropositiva há 12, acredita que a lipodistrofia também atrapalha os relacionamentos pessoais dos portadores do vírus. “Eu ainda não desenvolvi a doença, mas, certamente, é um fator que contribui para que as pessoas não se aproximem. E isso afeta também os diretos reprodutivos”, diz.
O Ministério da Saúde autorizou, em 2004, a realização de cirurgias reparadoras da lipodistrofia (veja quadro) pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No ano passado, nova portaria foi expedida para facilitar o credenciamento dos hospitais que fazem o procedimento.
Dados do fim de 2008 mostram que havia nove hospitais credenciados para fazer as cirurgias e outros sete aguardando aprovação da pasta. O próprio ministério reconhece que o alcance do serviço ainda é pequeno. “Mesmo com a nova portaria, os estados têm dificuldade para credenciar hospitais. Muitas vezes, é porque o atendimento de cirurgia plástica reparadora está concentrado nas capitais. Outras vezes, a demanda é maior do que a capacidade”, diz Kátia Abreu, assessora técnica do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do ministério.
Falta pessoal:
Isso acontece porque as equipes responsáveis pelas cirurgias reparadoras também atendem queimados, pessoas que passaram por cirurgia bariátrica, entre outros casos. “Não há um serviço exclusivo para os portadores do HIV. Além disso, os hospitais têm que se equipar para poder ampliar o atendimento”, explica Kátia.
Outro problema, diz a representante do ministério, é a falta de pessoal especializado em todas as regiões brasileiras. Tanto é que o Movimento Nacional Cidadãs Positivas, que reúne mulheres portadoras do HIV de todo o país, vai entregar uma carta aos conselhos de classe dos profissionais da saúde — médicos, enfermeiros, anestesistas, etc. A ideia é sensibilizá-los quanto à necessidade de manter mais pessoas trabalhando com as cirurgias reparadoras em todos os locais.
Prevenção em debate:
O Movimento Cidadãs Positivas deve entregar a carta aos conselhos profissionais até hoje, quando termina o 8º Congresso Nacional de Prevenção das DST e Aids e o 1º Congresso Brasileiro de Prevenção das Hepatites Virais. O evento ocorre no Centro de Convenções Ullysses Guimarães, com participação do governo, especialistas e militantes.
Efeitos colaterais reforçados :
Disney vive o drama de acompanhar as mudanças no corpo e sofre com a questão estética.

O professor Jorge Pinto, chefe da Divisão de Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a lipodistrofia acaba, muitas vezes, atrapalhando a adesão ao tratamento. Por ser uma doença crônica, o HIV exige que a pessoa tome remédios durante muito tempo e, com o aumento da sobrevida dos soropositivos, os efeitos colaterais ficaram ainda mais fortes.
“Uma pessoa que se olha no espelho e começa a ver que o corpo está mudando logo pensa em suspender a medicação”, aponta o professor. “As mulheres sofrem bastante, mas isso é ainda mais importante entre os adolescentes portadores do vírus, que vivem uma fase de aceitação na sociedade”, completa o especialista.
As mulheres soropositivas reclamam que não há estudos para reduzir os efeitos colaterais dos antirretrovirais. “Essa epidemia existe há 30 anos e ninguém se preocupou com isso até agora”, afirma a comerciante Lívia Lacerda. Ela lembra que não há medicamentos voltados para o corpo e para o metabolismo feminino. “Os remédios foram testados em pessoas com 80kg, 90kg. Imagine o efeito disso no meu organismo, que tem menos de 50kg de massa”, aponta Lívia.
Jorge Pinto explica que ainda não há nenhum medicamento do coquetel anti-HIV específico para as mulheres. No entanto, diz o professor da UFMG, há avanços na conjugação de diferentes drogas que podem reduzir os efeitos dos antirretrovirais. “Mesmo assim, é preciso ampliar a rede de hospitais credenciados para fazer as cirurgias reparadoras. Houve um progresso, mas a rede pode e deve melhorar para incluirmos mais essas pessoas”, opina.
Tratamento de sucesso:
Um estudo de 2008 do Ministério da Saúde mostra que a sobrevida dos pacientes de Aids das regiões Sul e Sudeste dobrou entre 1995 e 2007. No período, o tempo médio de sobrevida saltou de 58 meses para mais de 108 meses. A pesquisa analisou cerca de 2 mil adultos que tiveram o diagnóstico da doença entre 1998 e 1999.
Saúde em questão:
Pacientes soropositivos afetados pela lipodistrofia podem recorrer às cirurgias reparadoras pelo Sistema Único de Saúde.
Saiba quais são os procedimentos incluídos na Portaria nº 2.582, de 2004, do Ministério da Saúde:

· Lipoaspiração de giba — a gordura que fica na base do pescoço, dando a impressão de que a pessoa é corcunda
· Lipoaspiração da parede abdominal
· Redução mamária — retirada das glândulas e do tecido gorduroso acumulado na região
· Aumento das mamas
· Lipoenxertia — retirar a gordura de um local do corpo e transplantá-la para pontos onde falta o tecido adiposo, como na região do quadril
· Reconstrução glútea — aspiração da gordura ou implante de próteses de silicone
· Preenchimento da maçãs do rosto com tecido gorduroso
· Preenchimento das maçãs com polimetilmetacrilato (PMMA)